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A hermenêutica de Godwin

Acusar alguém de nazista tem pesos diferentes se feito no Brasil, nos EUA ou na Áustria. Para os países cuja história é mais diretamente marcada pela atuação de grupos de extrema direita antissemita, costuma-se ter um pouco mais de cautela antes de apontar um comportamento e dizer que se trata de uma manifestação do espírito do Terceiro Reich, exatamente pela gravidade com que esse tipo de acusação é visto. Em outras palavras, é uma ferida histórica ainda aberta, na qual não se mexe sem uma boa higiene das mãos. Por esse motivo é que me chamou a atenção uma notícia da Agência France Press veiculada pela revista Carta Capital, alertando para a realização de um “baile para nostálgicos do Terceiro Reich” no Hofburg, palácio dos Habsburgo em Viena, que contou com a presença de Marine Le Pen, candidata do partido Frente Nacional às próximas eleições presidenciais da França – entre outras personalidades políticas e celebridades ligadas à (extrema) direita europeia.

Enquanto isso, no Hofburg, as viúvas de Hitler confabulam. Ou não?

Em primeiro lugar, é absolutamente implausível que um evento de conhecimento notório (embora privado), realizado no centro da capital da Áustria, seja declaradamente pró-Hitler. Por isso, decidi verificar o que outros veículos teriam a dizer sobre o assunto. Um artigo no portal Haaretz, dedicado à comunidade judaica, esclarece melhor a situação: trata-se do Baile Vienense das Corporações (Wiener Korporations-Ball ou WKR-Ball para os da casa), que ocorre anualmente no Hofburg e reúne, segundo os promotores do evento, membros de organizações profissionais, agremiações estudantis e fraternidades. Se o baile já provocava controvérsia por ser frequentado majoritariamente por políticos de extrema direita (alguns acusados de terem ligações neonazistas), este ano os protestos voltaram-se contra a coincidência do WKR-Ball com o Dia Internacional de Memória do Holocausto, 27 de janeiro. Ariel Muzicant, líder da comunidade judaica vienense, afirmou que os organizadores estariam zombando do Holocausto, questionando sarcasticamente se o baile não seria uma “celebração” dos 2 milhões de mortos em Auschwitz. Como em todos os anos, houve também protestos durante a realização do evento – uma das faixas exibidas pelos manifestantes em frente ao Hofburg dizia “No WKR – Jedes Jahr die selbe Scheisse” (Não ao WKR – Todo ano a mesma m****). A organização do WKR-Ball, por outro lado, afastou a possibilidade de que o baile tivesse sido marcado propositalmente para “comemorar” o Holocausto, visto que ele sempre ocorreria na última sexta-feira de janeiro.

A pergunta que fica deste acontecimento em certa medida preocupante – e com certeza desagradável – é se algum dos lados tem total razão na história. De uma parte, os organizadores do WKR-Ball poderiam ter atentado para a dita mera coincidência e, agindo com sensibilidade perante a comunidade judaica, reconhecido a importância da data, mesmo que optassem por manter o baile no mesmo dia. Poderiam também ter sido mais cuidadosos ainda e transferido o evento para outra ocasião. Mas isso provavelmente causaria uma reação curiosa: não realizar o WRK-Ball do Dia Internacional de Memória do Holocausto significa que o baile é em si uma ofensa aos judeus? Os organizadores não confirmariam, assim, a impressão de que se trata de uma confraternização neonazista, ao invés de afastá-la?

De outra parte, aqueles que se posicionam contra a própria existência dessa confraternização não parecem saber de que acusá-la. Primeiro, protestar contra uma política de extrema direita significa protestar contra a possibilidade de reunião de expoentes do conservadorismo numa festa opulenta? (Não, responderia o muito citado Voltaire.) Segundo, é necessário associar a extrema direita ao Terceiro Reich e ao neonazismo para que ela possa ser criticada, ainda que esse tipo de associação proceda em alguns momentos? Nesse caso, a linha entre uma crítica política válida e um argumento que caia sob a Lei de Godwin é muito tênue. O desafio que permanece é: como acusar alguém de neonazista sem manipular promiscuamente essa ferida histórica em prol da propaganda política anticonservadora?