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PEC pra que te quero (edição 2013)

A verdadeira casa (ou casas) dos comuns

A verdadeira casa (ou casas) dos comuns

Tivemos em 2013, até o presente momento (Março), 35 propostas de emendas à nossa alquebrada e remendada Constituição Federal. Aproveitando o bafafá originado pela PEC 99/2011, aquela sobre extensão da legitimidade de propositura de ADI às entidades religiosas nacionais, a Casa dos Comuns traz para seu deleite particular algumas das propostas mais interessantes em circulação na Câmara e no Senado. Lembrando que as opiniões são todas da casa e todos estão convidados a concordar, discordar e/ou mesmo apresentar outras PECs interessantes entre Janeiro e Março de 2013.

Lembrando que se você se interessar por qualquer uma delas pode escolher assinar um informativo e ser avisado de qualquer desdobramento da proposta. O exercício da boa cidadania agradece!

Direto da Câmara:

PEC 243/2013 – autoria de Onofre Santo Agostini – PSD/SC

Ementa: Dá nova redação ao art. 101 da Constituição Federal, alterando a forma e os requisitos de investidura dos Ministros do Supremo Tribunal Federal.

Aval: Basicamente Agostini tenta resolver o caos que é a nomeação de Ministros do STF criando uma nova regra: para ser Ministro seria necessário passar por um “concurso público de provas e títulos”. E como seria esse concurso? Bem, isso Agostini não diz, deixa para lei complementar posterior decidir. O detalhe é que a emenda teria vigência imediata, o que implica no fato de que se algum Ministro precisar ser substituído e ainda não houver elaboração dessa lei complementar podemos chegar à exótica situação em que alguém pode entrar com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade do Omissão para proteger o STF, que ficaria impedido de ser preenchido. Dureza.

PEC 247/2013 – autoria dos deputados Mauro Benevides – PMDB/CE,  Alessandro Molon – PT/RJ,  Andre Moura – PSC/SE

Ementa: Altera o “Capítulo IV – Das Funções Essenciais à Justiça” do “Título IV – Da Organização dos Poderes” e acrescenta artigo ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal.

Explicação da Ementa (!): Propõe a fixação de um prazo de oito anos, para que a União, os Estados e o Distrito Federal se organizem para poder contar com defensores públicos em todas as unidades jurisdicionais.

Aval: O problema das defensorias públicas é tão antigo quanto a Constituição e sua solução é extremamente complicada. O que a PEC faz é dar um prazo de oito anos pra todos os estados terem defensorias instaladas e em funcionamento. É factível, mas demanda uma vontade política e alocação de verbas grande. Não tenho certeza se essa seria a via mais adequada mas, pelo menos, é uma questão essencial para a democratização dos direitos no Brasil. Para quem não sabe, a defensoria defende quem não tem condições de ter uma boa defesa custeada por si. Se tivermos um sistema de defesa pública de qualidade com certeza a prestação jurisdicional será bem melhorada.

PEC 241/2013 – de autoria do deputado Amauri Teixeira – PT/BA

Ementa: Dá nova redação ao art. 165 da Constituição Federal incluindo o § 10 para que cada município brasileiro apresente uma emenda a Lei Orçamentária Anual.

Aval: Basicamente o deputado sugere que os 4.953 municípios de até 50 mil habitantes tenham direito a propor uma emenda à Lei Orcamentária Anual a ser avaliada em audiência pública local. A emenda deve indicar quais áreas são consideradas prioritárias para a população, entre algumas listadas no texto da PEC. Não que a ideia não seja interessante, favorecer a gestão que inclui os cidadãos, mas eu não consigo nem imaginar como seria, numa questão de logística e organização, incluir obrigatoriamente 5.000 emendas ao orçamento. Alguém me explicaria?

No Senado da República:

PEC 03/2013 – de autoria de Fernando Collor

Ementa: Altera a Constituição para determinar novo procedimento de composição do Supremo Tribunal Federal e alterar a idade de aposentadoria compulsória.

Aval: Proposta bastante interessante, especialmente se contraposta à 243 mencionada acima. Aqui Collor sugere que o STF passe a ser composto por 15 membros com mandatos de 15 anos. E tem mais: muda o regime de aposentadoria de magistrados, criando uma aposentadoria automática para o Ministro do STF ao final do seu mandato. Além disso estabelece que a indicação de ministro não seria de livre escolha, mas uma seleção numa lista quádrupla fornecida por: Tribunais Superiores (?), CNJ, Conselho Nacional do Ministério Público e OAB. Não fica claro como funciona essa indicação por parte dos componentes dos tribunais superiores (O mesmo ministro pode votar em um tribunal superior e no CNJ?), mas no geral parece uma proposta bacana, com atenção especial para o Direito Comparado.

PEC 10/2013 – autoria do Senador Álvaro Dias

Ementa: Altera os arts. 102, 105, 108 e 125 da Constituição Federal para extinguir o foro especial por prerrogativa de função nos casos de crimes comuns.

Explicação da Ementa: Altera a Constituição Federal para extinguir o foro especial por prerrogativa de função em casos de crimes comuns.

Aval: A questão é direta mas de consequências complicadas. Basicamente a PEC retira a proteção do foro privilegiado em caso de crime comum, deixando que crimes como homicídio, estelionato e etc. sejam julgados nas instâncias normais, por uma questão de isonomia. Fica o foro especial no caso de crime de responsabilidade. É uma mudança GRANDE, inclusive, alterando vários artigos. Fica a dúvida: e os argumentos de “perseguição política”? Nossas instituições são fortes e confiáveis o suficiente para aplacar essas dúvidas (e/ou factóides)?

PEC 15/2013 – de autoria do Senador Pedro taques

Ementa: Cria a solicitação de urgência por iniciativa popular para proposições em tramitação no Congresso Nacional ou qualquer de suas Casas.

Aval: Esse é o típico caso de PEC que não resolve mas cria uma possibilidade muito interessante para resolver problemas (e para agravá-los). Basicamente a PEC cria um regime de urgência nos casos de iniciativa popular, com um adendo bastante significativo: ficará a cargo de lei posterior regulamentar o exercício dessa iniciativa popular, sendo incluído até o uso de meios digitais! Ou seja: podemos chegar a ter um sistema de consulta popular via internet. Isso é potencialmente muito bom e/ou muito ruim, é o ideal numa ideia de democracia de cidadãos conscientes, é o inferno numa democracia de cidadãos vitriólicos e incapazes de pensar de forma cívica. Assim sendo, é uma espécie de teste da tessitura de um sistema sócio-jurídico. Bastante interessante, merecedora de muitos estudos e opiniões. Que tal?

Mas… precisa mesmo internar?

Retirado do site da Carta Capital

 

de Fernanda Aguilar Perez

Há mais ou menos um ano, ocorreu em São Paulo a “Operação Centro Legal” na região da Cracolândia. Essa operação era uma ação conjunta dos governos estadual e municipal para dispersar os usuários de drogas do centro da cidade. Criticada inclusive pelo Conselho Regional de Medicina de São Paulo [1], por ter cunho higienista [2], ela foi interrompida a mando do Ministério Público. Atualmente, o governo estadual voltou a intervir na região, afirmando que faria internação involuntária ou compulsória dos dependentes químicos de crack que lá estivessem com o objetivo de combater o tráfico e o consumo da droga, assim como de prestar assistência sanitária aos usuários.

Sob a perspectiva da psiquiatria, a dependência química é um tipo de transtorno mental. Consequentemente, políticas voltadas para usuários dessas substâncias são justificadas pela lei nº 10216 de 2001, mais conhecida como Lei Paulo Delgado ou Lei da Reforma Psiquiátrica. Essa lei é bastante respeitada por ser um marco na mudança da perspectiva com a qual o Estado lida com saúde mental: manicômios ou instituições de repouso não foram mais incentivados, e a atenção assumiu uma perspectiva relativamente humanizada, com estímulo à participação familiar no cuidado do paciente. Para isso, a lei definiu três tipos de internação, que devem ocorrer somente se necessárias e são justificadas pela proteção da vida do paciente. Segundo o artigo 6º, são elas: internação voluntária, com anuência do paciente; involuntária, quando o paciente não concorda, mas há consentimento de um familiar e o laudo de um psiquiatra que indique essa prática, com notificação ao Ministério Público; e a compulsória, que ocorre por determinação judicial após pedido médico e somente deve ocorrer quando o paciente coloca em risco sua própria vida ou a vida de terceiros. Assim sendo, pessoas com quadros esquizofrênicos graves que ameacem cometer suicídio durante um surto também podem ser internadas compulsoriamente, posto que colocam em risco sua vida.

Foi exatamente com essa lei que o governo paulista justificou sua pretensão de internar os dependentes químicos. Foram instalados no Cratod (Centro de Referência de Álcool, Tabaco e Outras Drogas) representantes do Ministério Público Estadual, da OAB-SP e da Defensoria Pública, com o objetivo de facilitar os trâmites caso houvesse necessidade de internações involuntárias ou compulsórias. Com essa atitude adveio um questionamento na sociedade entre grupos a favor e contra as internações: afinal, confinar o usuário seria o melhor tratamento possível ao qual ele teria acesso? Ele mesmo não deveria ter o direito de decidir se gostaria ou não de ser internado? O dependente químico não teria autonomia para decidir sozinho o que seria melhor para si?

São perguntas desse tipo que levam a Saúde Pública a recorrer à bioética. Visando integrar ciências biológicas e sociais aos valores e princípios morais [3], a bioética é fundamentalmente multidisciplinar e tem como objetivo analisar questões de equidade, de justiça social, de desenvolvimento econômico e de saúde pública (CLOTET, 2009). As ações dos homens deveriam ser éticas com o intuito de minimizar possíveis danos a outros e a si mesmos, sendo a ética considerada um mecanismo para a proteção dos mais fracos – ou das pessoas com autonomia comprometida. A autonomia, por sua vez, significa “poder da pessoa (…) de tomar decisões que afetem sua vida, sua saúde, sua integridade físico-psíquica [e] suas relações sociais” (FORTES, 1998). Para que ela exista, a pessoa necessita ter liberdade de pensamento, liberdade de opção e liberdade de ação, ou seja, ela não pode sofrer coação para escolher o que fazer e reagir livremente conforme as decisões que tomou.

Respeitar a autonomia é respeitar a dignidade humana e o conjunto de valores e princípios de cada um. Existem, porém, momentos nos quais a autonomia individual, ainda que de modo transitório, é diminuída: crianças, deficientes mentais, pessoas em coma ou sob o efeito de drogas, por exemplo. Nesse último caso, a perda da autonomia se dá somente em determinados momentos, e o Poder Legislativo é entendido como a única esfera de poder autorizada a decidir qual o limite legal da autonomia individual – e o Judiciário deve, dessa forma, fazer cumprir com as determinações legais. À saúde pública cabe somente agir segundo os princípios da beneficência – agir pelo bem estar alheio – e da não maleficência – não causar dano ao outro.

Desse modo, as internações involuntárias ou compulsórias deveriam servir para proteger o indivíduo somente no momento em que sua autonomia estivesse comprometida, diante de análise do Judiciário e laudo médico. São geralmente casos extremos, como quando o dependente químico deixa de se alimentar, ameaça constantemente cometer suicídio ou então ameaça, com fundadas provas, matar outras pessoas ou causar qualquer tipo de dano a terceiros. A intervenção do Estado deve ocorrer quando o indivíduo coloca em risco sua própria vida em um momento em que ele não apresenta liberdade de pensamento, liberdade de opção e liberdade de ação por problemas particulares – no caso, durante consumo abusivo de drogas; e não quando a sociedade o julga como um distúrbio em potencial à ordem pública.

Consequentemente, a internação não deve ser um fim, mas um mecanismo para que o dependente químico receba atenção especializada em situações extremas. A internação per se já é um caso extremo. A maioria dos usuários de drogas poderia receber atenção ambulatorial, ou seja, sem internação, apenas recebendo acompanhamento adequado do sistema de saúde. Com ênfase no que a própria Lei Paulo Delgado determina em seu artigo 2º, o atendimento deve buscar a reinserção familiar do usuário, com direito a amplas informações sobre seu tratamento, ambiente terapêutico pouco invasivo e, preferencialmente, com atenção em serviços comunitários de saúde mental.

Os Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS AD) foram criados com base nas diretrizes dessa Lei, fazendo com que internações fossem necessárias somente em situações específicas e enfatizando um tratamento holístico ao paciente, com reuniões com a comunidade, com grupos de discussão dos dependentes, com acompanhamento psiquiátrico e com fornecimento de medicamentos se necessário, mas sem internação. O dependente pode até ficar em repouso no Centro, e depois ir embora se quiser. Internar a todos seria culpar os usuários dependentes, restringindo sua liberdade. Os CAPS AD não buscam o isolamento social do dependente, ao contrário. Seu objetivo é envolver a família e a comunidade no tratamento, praticando assim uma política de redução de danos e de não-culpabilização do sujeito dependente. Interná-lo e não oferecer tratamento adequado seria o mesmo que o colocar nos antigos manicômios, ou seja, isolá-lo da sociedade e fingir que o problema das drogas não existe.

Vale ressaltar que, até o dia 26 de janeiro de 2013, somente internações voluntárias ou involuntárias foram realizadas pelo governo. Familiares ou os próprios usuários se dirigiram ao Cratod pedindo a internação, alguns até mesmo com laudo médico já feito. Não ocorreu uma ação como a do dia 24 de outubro de 2012, no Rio de Janeiro, quando agentes da prefeitura e da polícia chegaram à Cracolândia da Avenida Brasil para reprimir o tráfico e levar os usuários a abrigos, inclusive de forma compulsória. Essas ações também ensejam dúvida no âmbito do Judiciário. No dia 4 de janeiro, o desembargador Antônio Carlos Malheiros, responsável pela Vara da Infância e da Juventude do Tribunal de Justiça, concedeu uma entrevista ao jornal O Estado de São Paulo [4], em que declarou que [seu] “receio é de que isso seja uma desculpa para se fazer uma internação em massa na região”, temendo que essas internações virassem uma prática higienista, um ato para separar dos centros urbanos a doença e a loucura (SCHWARCZ, 1993).

É exatamente esse o debate que deve ser aprofundado: as internações não devem ser entendidas como único tratamento disponível, nem como solução definitiva ao problema das drogas, muito menos como uma saída para a revitalização do centro de São Paulo. A condição em que se encontram os usuários de drogas e as distintas maneiras de protegê-los e ajudá-los deveriam ser mais discutidas no âmbito público, inclusive porque muitos ainda possuem autonomia para escolher o que fazer – e, consequentemente, não necessitariam ser internados.

Fernanda Aguilar Perez  é mestre pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP/USP), e pesquisa sobre a Cooperação Internacional em temas de saúde pública. Possui graduação em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2006) e mestrado em Relações Internacionais pelo Barcelona Institute of International Studies (IBEI – 2009), entidade espanhola idealizada pela Universidade Autônoma de Barcelona, Universidade de Barcelona e Universidade Pompeu Fabra. Tem experiência na área de Ciência Política, Relações Internacionais e Saúde Pública, com ênfase em direitos humanos e desenvolvimento.

Referências:

Boghossian B, Dantas T, Cardoso W. Estado quer ‘mutirão’ para internação involuntária de viciados na cracolândia. O Estado de São Paulo. 4 de janeiro de 2013; Notícias São Paulo. Disponível em http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,estado-quer-mutirao-para-internacao–involuntaria-de-viciados-na-cracolandia-,980434,0.htm. Acesso em 19 fevereiro 2013.
Clotet J. Por que Bioética. Revista Bioética. 2009; 1 (1). Disponível em: http://www.revistabioetica.cfm.org.br/index.php/revista_bioetica/article/view/474/291. Acesso em:  18 fevereiro 2013.

Conselho Regional de Medicina de São Paulo, Câmara Técnica  de Saúde Mental. Cracolância, por diretrizes convergentes. Rev. Latinoam. Psicopat. Fund. 2012; 15 (1): 11 – 13.

Fortes PAC. Ética e Saúde. São Paulo: EPU; 1998.

Schwarcz LM. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil (1870-1930). São Paulo: Companhia das Letras; 1993.


[1] Manifesto do Cremesp em conjunto com a Câmara Técnica sobre o tema disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1415-47142012000100001&script=sci_arttext. Acesso em 18 fev 2013.

[2] Para uma perspectiva qualitativa da Cracolândia,  sugere-se o artigo disponível em http://www.cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/arquivos/imagens/20091202090612_2.doc Acesso em 18 fev 2013.

[3] Clotet apresenta uma discussão sobre os valores e princípios em http://www.revistabioetica.cfm.org.br/index.php/revista_bioetica/article/view/474/291. Acesso em 18 fev 2013.

Onde fica a Casa dos Comuns

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A Casa dos Comuns completou um ano de existência em Dezembro passado mas só agora deu para, no finalzinho das férias, elaborar um post inaugurando o ano de trabalhos. Depois do primeiro fica mais fácil comentar sobre as pautas à medida em que elas se apresentam. Assim, eu pretendo começar o ano falando sobre como espero que seja 2013, ou como pretendo trabalhar por aqui. Read More…

A liberdade de ser (maluco?) ofensivo

Essa imagem é de um protesto totalmente diferente

Ontem a internet engajada foi tomada de assalto por uma campanha do Fórum Permanente Pernambucano Pró Vida de combate ao turismo sexual. Combater esse fenômeno daninho que causa graves problemas sociais em um país extremamente turístico como o nosso não seria problema algum. O negócio é que a turma não perde viagem e já vai reclamar junto de alguns crimes (Pedofilia, Exploração sexual de menores) e outras atividades contra a moral e os bons costumes como a Prostituição e o Homossexualismo. Aparentemente para os proponentes dessa colorida e jeitosa campanha, Pernambuco não é lugar de atos como esses, que ameaçam a vida (!) por meio do turismo sexual.

Deixando de lado certos detalhes discretos (Há uma hierarquia de maldades? Se homossexualismo e pedofilia são os maiores, o que dizer dos padres pederastas? Qual a razão do “Quer” estar com um Q maiúsculo?) é preciso dizer algo claro e inequívoco sobre esse testemunho da bizarrice pública pernambucana: esse tipo de manifestação deve ao mesmo tempo ser estimulada e totalmente destroçada. Calma, como assim?

A alquebrada esfera democrática funciona não só pelos procedimentos eleitorais mas também pela composição coletiva de opiniões. Poder opinar sobre o que é certo e o que é errado é essencial no sistema, com cada participante tendo o direito (não o mesmo direito, mais sobre isso a seguir) de defender suas posições. O concerto democrático é precisamente a soma dos vetores antagônicos que se situa em um ponto resultante das diversas fontes de influência que tentam movê-lo. Uma sociedade mais conservadora vai puxar o debate – e, consequentemente a sociedade, por meio de todas as normas que conformam o comportamento social – mais para um lado, enquanto outra sociedade progressista provavelmente configuraria suas obrigações – inclusive direitos e deveres – em outro parâmetro, mais liberal. Esse cabo-de-guerra ocorre por meio do discurso público, e, adicionalmente, no processo eleitoral. Nas eleições os representantes dos pontos de vista mais diversos são colocados em posição de influência na escolha desses parâmetros da sociedade.

Os grupos defensores de opiniões extremamente divergentes tem tanto direito quanto os demais grupos mais “pacíficos”, contanto que o façam na forma da lei. Nem todo argumento tem o mesmo peso, mas ressalvado o obstáculo objetivo que pode existir (argumentos apresentados com violência, coação), cabe às partes da comunicação avaliarem subjetivamente sua importância e seu valor. Quando um pregador aparece dizendo que todos devem se arrepender, pois o mundo será consumido em chamas no próximo doze de Dezembro ele simplesmente não será levado a sério. Não importa que não haja provas claras que sustentem sua visão, fruto somente de fé do seu proponente e seus seguidores (se houver). As pessoas só vão olhar para o sujeito e dizer: meu chapa, você é ridículo. O tratamento em todas as mensagens de extremismo (que não incluírem apologia criminal, claro, aí muda de figura) devem ser tratadas com a mesma simplicidade e liberdade: quer falar bobagem, fala.

Somente quando todos estiverem acostumados a participar de um debate democrático que precisa necessariamente filtrar ideias ruins nós poderemos crescer em sofisticação como democracia. No atual contexto só existe a verdade posta (em negação à verdade não-dita) e a verdade alta (em contraposição ao discurso silencioso). Um discurso deveria ser combatido por outro discurso não necessariamente mais ruidoso, simplesmente outro mais consistente. Não precisa ser um gênio da Hermenêutica para perceber que as causas demonizadas pelos defensores da valorosa moral pernambucana apenas expressam ojeriza um pacotão de maldades sem nem parar pra identificar qual é o problema de cada um. Como já citado, comparar exercícios regulares de direito com crimes é simplesmente burrice. Se fosse alguém com um pouco mais de bom-senso pelo menos argumentaria, digamos, sobre os malefícios sociais da prostituição. E talvez teria até argumentos interessantes a acrescentar. Mas a opção pela crítica acerebral é simplesmente mais fácil.

Para alguém que leve o discurso liberal a sério é imprescindível aquela máxima atribuída a Voltaire: “Eu desaprovo o que dizes, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo.” A despeito de quem seja seu real autor – a internet sabe ser enganadora – ela carrega uma mensagem poderosa. Os discursos na democracia devem ecoar para que possam, após sua verbalização, serem contraditados. Presumir que somos impossíveis de discutir argumentativamente é desqualificar toda a proposta democrática como paternalista: trocaríamos a autonomia pelo governo em que alguns escolhem quais são as mensagens que podem ser “processadas” pela população. Esse tipo de mensagem odiosa deve ser recebida como uma manifestação livre e no mesmo espírito destruída não por ser uma manifestação de expressão, mas por ser uma expressão odiosa, preconceituosa. Quem esposa esse tipo de opinião deve ser considerado assim: alguém que defende o atraso. Cabe a cada um saber quais valores prefere afirmar. Entrar na esfera de discurso e saber que poderá haver contestação. Os extremistas ofensivos devem saber que serão chamados de idiotas, e provavelmente não vão se importar mesmo. A nós – que defendemos uma esfera pública de debate racional – cabe continuar debatendo e mandando todos os imbecis para onde eles merecem ir: categoria do ridículo. Sério, alguém me explica esse “Quer”, eu preciso MUITO saber.

Envie seu post para a Casa

A Casa dos Comuns não tem esse nome só por ser um trocadilho com a política britânica. Nossa proposta é falar do debate público e dos temas que o compõem, e esse debate não é possível sem o reconhecimento do que há de comum entre nós e vocês: a capacidade de desenvolver argumentos racionais e honestos.

Se essa crença é para alguns ingênua, para nós é a razão de ser do blog. Tampouco achamos que apenas expor nossos próprios pontos de vista é suficiente para a proposta do blog. Por isso, nosso espaço é aberto. Convidamos todos os leitores a colaborarem com as nossas discussões, enviando seus posts para a coluna Opinião de Quinta, que acontecerá às quintas-feiras.

Tem algum tema da esfera pública sobre o qual você anda querendo escrever? Alguma polêmica sobre a qual você quer se posicionar? Algum assunto que você acha que as pessoas esquecem injustamente de abordar? Alguém que você quer criticar (só cuidado com o ad hominem!), mas não sabe onde? A Casa dos Comuns também é sua.

Não há restrição de assunto nem de posicionamento político, moral, estético, religioso ou gastronômico. Recomendamos, porém, que você evite falácias lógicas e retóricas (esta tabela é um ótimo guia de como não escrever para a Casa dos Comuns) e procure adotar um estilo menos hermético-acadêmico e mais didático, tendo em vista que nem todos os leitores são da sua área. Pretendemos privilegiar posts que trazem questionamentos originais e opiniões fundadas, ou seja, que não se resumem a “eu acho isto porque acho isto”. Em outras palavras, a Casa dos Comuns não se contenta com respostas fáceis.

Procuraremos responder a todos os posts com nossas sugestões e avaliações. Para enviar o seu, é só mandar um e-mail para casadoscomunsblog [at] gmail.com.

Boa diversão!

Entre os Big Brothers

É, eu me ferrei

Em algum ponto de 2012 o ator/modelo/DJ Daniel Echaniz tornou-se conhecido nacionalmente por dois motivos: o primeiro por ter sido integrante do programa de maior lucro sobre a renúncia da privacidade do país (mais sobre isso no futuro, cobrem-me), o Big Brother Brasil entrando numa casa ultra-equipada com toda sorte de merchandising e povoada por inúmeras atividades aleatórias e exóticas. O segundo motivo foi exatamente a forma como foi enxotado dessa casa, com a acusação de ter praticado sexo não-consensual com uma moça desacordada, o chamado estupro de incapaz. Essa semana Daniel botou a boca no trombone: vai exigir reparações da Globo, sua imagem foi consideravelmente chamuscada por sua expulsão. Por mais que a empresa nunca tenha acusado-o diretamente de ter praticado estupro, a forma de sua expulsão deixou subtendido que não só tinha sido esse o caso como a emissora só queria evitar problemas com a polícia tendo de realizar uma investigação criminal em rede nacional – com direito a pay-per-view e vários ângulos.

A despeito dele ser culpado ou inocente, o problema enfrentado pelo jovem mancebo é sintomático de um grave desvio na percepção da própria ideia de Direitos Humanos. Explicando superficialmente: os chamados Direitos Humanos foram tradicionalmente reconhecidos em termos relativos ao Estado. Os chamados direitos de primeira geração, ou direitos de defesa, são aqueles em que o cidadão pleiteia proteção contra o rolo compressor estatal. É o caso, por exemplo, dos chamados direitos de liberdade: liberdade de expressão, de credo, de mobilidade. Para satisfazer esse direito, basta que o Estado não intervenha nas relações sociais. Se não houver censura então sua liberdade de expressão em princípio estará garantida. Já os direitos de segunda geração, os chamados direitos prestacionais, são aqueles em que é preciso alguma forma de contribuição do Estado para que aquele direito seja satisfeito. É o caso do direito à educação, saúde, lazer. Não basta a omissão, é necessária a ação que garante aquela satisfação. Como já dito, em ambos os casos trata-se de uma relação entre um elemento mais forte – o Estado – e um mais fraco –  o cidadão.

Mas naquelas ironias da vida, neste caso destacado o Big Brother não é o Grande Irmão orwelliano, a instituição da qual o programa deriva seu nome, o Estado Nacional. Aqui o polo forte, digamos assim, da relação, é uma empresa, a Rede Globo de Televisão. Ou seja, um particular. Quando o Estado vai indiciar alguém por um crime precisa utilizar um procedimento, trata-se de uma garantia – de processo penal, no caso – do cidadão contra o Estado. Mas essa garantia também se estende a particulares? Os Direitos Humanos também são exigíveis a particulares? Em quais termos?

No jargão dos Direitos Humanos esse fenômeno é chamado de horizontalidade. Trata-se da aplicação horizontal de direitos, o reconhecimento dos direitos por iguais, elementos do mesmo nível institucional. O Estado possui um aparato jurídico-político para destroçar qualquer um em seu caminho, sendo limitado pelas leis. Todo o resto situa-se no domínio do civil (ou internacional, mas não vem ao caso aqui). Quando a Globo resolve fazer uma investigação para descobrir se foi cometido ou não o crime de estupro, em tese o réu, Daniel, deveria ter plenos direitos à ampla defesa, tal qual teria em um processo criminal. Por mais que não seja um processo, mas as consequências da situação particular tem efeitos jurídicos sérios. Nosso caro brother provavelmente perdeu uma polpuda fonte de renda, já que em vez de virar o xodó das debutantes país afora, tornou-se culpado nacionalmente por um crime a qual foi sequer submetido a julgamento. É uma situação bastante complexa, pois incide uma diferença nebulosa: qual é o limite da autonomia do privado? Qual é o limite da incidência dos parâmetros públicos nos afazeres particulares? Uma injustiça cometida entre particulares pode ser considerada uma injustiça material, corrigida em sede de violação a direitos fundamentais?

Em outro blog eu fiz uma análise pormenorizada de uma situação similar, acontecida no Reino Unido: o jogador Luiz Suárez foi acusado de racismo por outro jogador, e com base em sua palavra somente – ninguém mais ouviu as pretensas declarações, tampouco foi possível encontrar qualquer vídeo em que o Suárez dissesse o que o outro jogador afirmou que ele tinha dito – foi suspenso em 8 jogos. A justificativa é muito simples: a federação inglesa de futebol não tem obrigação de seguir os princípios processuais públicos, exatamente por se tratar de um ente privado. Suscitei à época a seguinte questão, que já expus no parágrafo anterior: em atividades análogas às públicas – sobretudo por suas consequências danosas – não deveria haver uma concessão de direitos aos particulares? Só o Estado pode oprimir um cidadão? A partir de qual momento a proteção especial que os Direitos Humanos impõem deve ser ativada mesmo nas relações particulares?

A constituição brasileira define em seu art. 5º um extenso rol de direitos fundamentais, e especifica em seu parágrafo primeiro que todos esses direitos tem aplicação imediata – ou seja, podem ser exigidos a qualquer tempo. Logo, se há direito, então é preciso existir um remédio judicial, uma forma de garanti-lo. Mas fica a dúvida: o que falta para que possamos aplicá-lo? O cidadão fica espremido entre o Estado e o poder de outro particular?

Regras para um bom debatedor

"Esta não é uma discussão!"

O sempre combativo João Telésforo (@jtelesforo no twitter, vale também o follow – menos em assuntos futebolísticos) elaborou uma lista de 12 regras para bons debatedores que está disponível para leitura e comentários no blog B&D – Brasil e Desenvolvimento. Vou tomar a liberdade de publicar o texto na íntegra, ressalvando o convite para que todos dêem um pulo lá no site original e leiam outros posts do blog desse grupo bastante interessante “sediado” na UnB. É um dos poucos grupos brasileiros que eu me arrisco a chamar de “progressista” sem sombra de sarcasmo, creio que infelizmente. Numa terra em que até os liberais são conservadores não há como se por muita fé no progresso.

De todo modo, ao post, seguido por comentários:

Por João Telésforo Medeiros Filho

Aos amigos do Instituto Alvorada e do grupo Repensar a Esquerda, inspirado por nossos bons debates.

1. Antes de falar (ou escrever), ouça (ou leia) o que a outra pessoa tem a dizer.

2. Espere a outra pessoa terminar de falar, ouça-a até o fim, não a interrompa. Não suponha que você já sabe o que ela vai dizer, nem que ela não pode falar nada que tenha importância.

3. Desqualificar o seu interlocutor (ou interlocutora), seja lá no que for, não prova que o ponto que você defende esteja certo (a não ser que a discussão seja sobre os méritos do seu interlocutor, o que não costuma ser muito produtivo).

4. Vá além do Fla-Flu. Lembre-se que, nas questões que vale mais a pena discutir, dificilmente existem apenas dois lados, um contra e um a favor. Preste atenção à variedade de posições existentes, às diferenças, grandes ou sutis, entre elas.

5. Esteja aberto a aprender com o seu interlocutor (ou interlocutora), e com o desenrolar da discussão. Disponha-se a considerar novos fatos e pontos de vista, e a criar, por meio do processo de diálogo, novas ideias, que não estavam no seu mapa mental antes. Essa é uma das principais razões para se discutir qualquer coisa.

6. Não compartilhe apenas opiniões e certezas com o seu interlocutor, mas também dúvidas, angústias e inquietações. Quando duas pessoas pensam a partir de perguntas, é maior a chance de que possam, juntas, dar passos adiante na compreensão das diversas respostas possíveis, bem como na imaginação de novas respostas e perguntas.

7. Evite usar rótulos pejorativos, como “reacionário”, “extremista”, “pelego” (e também, claro, “imbecil” ou “burro”), para enquadrar o interlocutor. Ainda que as opiniões dele realmente mereçam rótulos desse tipo, você vai ter mais sucesso em mostrar o seu ponto se conseguir expôr de outra maneira a falta de fundamento de uma ideia ou argumento, ou o seu teor nocivo.

8. Evite até mesmo rótulos que não tenham, necessariamente, sentido pejorativo (como liberal, comunista, etc). Eles têm sua utilidade em diversos contextos, mas o seu uso, numa discussão, frequentemente acaba levando-a a ser mais sobre o rótulo (eu/você sou/não sou é/não é liberal/comunista/capitalista), e menos sobre a questão em torno da qual se pretendia conversar. Então, é melhor usar um rótulo só se você estiver a fim de discutir isso (o que até pode valer a pena eventualmente, por diversas razões).

9. Encare o diálogo como uma conversa, não como uma briga. Seu objetivo não é destruir o interlocutor, nem mostrar que ele é um bosta e você é foda (a não ser que você seja um completo idiota e costume conversar com os outros por essa razão – ops, se for esse o caso, acabo de rotulá-lo ;) ). Não é melhor dialogar para pôr os próprios pontos de vista à prova do raciocínio de outras pessoas, conhecer perspectivas diferentes das suas, pensar novas ideias em conjunto com outras cabeças?

10. O desejo de convencer os outros também é legítimo, claro – e, por vezes, pode ser até um dever -, mas não se deixe cegar por ele. Não se torne dogmático, fechado à reflexão autocrítica, à curiosidade por ideias diferentes e novas, e à criatividade que pode emergir de uma boa discussão.

11. Não trate o seu interlocutor como um idiota, não use de didatismo exagerado. Por outro lado, também não pressuponha que ele conhece os seus pontos de partida ou concorda com eles. Quando se tratar de uma premissa fundamental à compreensão do seu raciocínio, cheque se está clara e compreensível, e a exponha bem.

12. E aí, o que achou destas regras?

PS: eu mesmo, infelizmente, tenho dificuldades para conseguir cumprir várias dessas regras. Quanto mais consigo fazê-lo, porém, percebo que mais proveitoso costuma tornar-se o debate. Então, este texto é literalmente de auto-ajuda: uma sistematização que escrevi para ajudar a mim mesmo.

João nos passou a perna – são só 11 regras, pensa que não notei? – mas elaborou um bom ponto de partida. Gostaria de acrescentar algumas ideias para sua avaliação.

A ideia de uma espécie de regras de um debate humanitário é excelente, e se tem algo que a esfera pública de debate precisa para sua sofisticação é a adoção de algumas linhas para compreensão mútua. Como Telésforo evidenciou, não se trata de um jogo de soma zero, em que um precisa sair vencendo. Se você acredite em um ambiente de pluralidade discursiva, então você precisa ter a maturidade para aceitar a dialética, no aparar dos discursos que se chocam. Por mais que o imaginário popular geralmente trate os grandes debates como campo de guerra eles são, em essência, mais assemelhados a partidas de xadrez. Há regras que devem ser seguidas para que o objetivo final seja alcançado. Qual é esse objetivo? Entre os debatedores honestos é a compreensão. Há infinitos malucos da estirpe de Reinaldo Azevedo por aí, que só fazem apologia de ideias, sem jamais serem convencidos de nada (Podem me apedrejar, mas eu acho os chiliques de Diogo Mainardi extremamente divertidos, a rusga dele com Cuiabá foi uma das coisas mais hilárias que eu já li na vida). Mas para aqueles sinceramente preocupados em fazer um Brasil melhor devem se voltar para outros exemplos, muito mais profundos e úteis. Pra cada Reinaldo Azevedo há dúzias de Alon Feuewerker (@AlonFe), Raphael Neves (@politikaekt) ou Joões Telésforos da vida dispostos a discutir abertamente. Por isso eu sugiro uma regra a ser inclusa em qualquer lugar: Não discuta com quem não quer discutir. Se a pessoa só quer perder seu tempo te fazendo ouvir suas verdades dogmáticas, enuncie aquele samba: eu não sou porta de cinema para te dar cartaz. Discutir com uma porta só vai te fazer gastar sua voz (ou dedos), não ajudando nem você nem a porta. E te fazendo perder a paciência com pessoas que tem um interesse genuíno em se fazer entender.

Um parêntese: para como lidar com os crápulas, se você ainda assim quiser passar pelo sofrimento que é discutir à toa, recomendo a leitura de Arthur Schopenhauer, que fumaçava de ódio desse tipo de figura, e escreveu um curtíssimo manual colérico contra essa forma de patifaria, mui adequadamente apresentado no Brasil por Olavo de Carvalho. A ironia beira o sublime.

Continuando: Trata-se de uma questão de urbanidade. Inclusive eu dividiria o Codex Telesforiano em três tipos de regras: (1) Regras de Urbanidade – aquelas que sua mãe deveria ter te ensinado, i.e.: 1,2,9,10. (2) Regras de Técnica Discursiva – ninguém nasce sabendo, mas um dia precisa aprender a não ficar andando em círculos (3-5, 7 e 8). 3) Princípios de Valor Discursivo – coisas que você nunca deveria perder de vista se pretende levar a sério o seu papel como cidadão ativo na pólis (6 e 11). Nós vivemos em um ambiente discursivo podre, e só essas regrinhas já ajudariam bastante a tirar esse peso maçante de décadas de gordura ideológica permeando nossos discursos, em que literatos e poetas se estapeiam entre volumes surrados da coleção Os Pensadores da Abril. Precisamos pensar com menos preconceitos, menos espírito de clube (A Frente Popular pela Libertação da Judéia não chegou perto de seus objetivos, infelizmente).

Uma das regras mais interessantes a meu ver é a 6, na medida em que ela clama para que os debatedores questionem-se. É muito mais fácil testar a força de um argumento submetendo-o a exemplos. E nesse caso, como fica? Mas eu não sei como a situação se desdobraria no seguinte caso. E agora? Essa espécie de admissão de dúvida é algo que muitas vezes passa longe dos debatedores públicos brasileiros, todos empenhados na ideia de defender sua bandeira a ferro e fogo. Defender uma posição ideológica não é o essencial. Sou amigo de Platão, mas sou mais amigo da verdade. Muitas vezes sua própria compreensão da situação em discussão pode estar prejudicada. Muitas vezes sua opinião pode estar diametralmente equivocada. É um fato da vida, nós erramos. E se perdoamos nossa falibilidade poderemos entender que todos são passíveis de erro, mesmo nossos dialogadores. Se temos plena convicção de sua disposição para um debate sério então a discussão passa por descobrir os pontos de divergência, os elementos de de divergência. Com base nesse espírito sugiro mais uma regra: Estimule a divergência leal. O conceito de loyal opposition é muitas vezes ignorado por nós. Às vezes mais importante do que ter um apoio diuturno é ter um crítico costumeiro que sempre vai te chamar a atenção quando você sair da linha. Valorize seus debatedores, o sucesso do seu aprendizado sempre será devido, ao menos em parte, a eles.

Finalmente, um último comentário: uma das melhores coisas de discutir com pessoas com formação marxista (marxiana?) é a honestidade nas premissas. É uma questão de praticidade discursiva deixar bem claro, sem rodeios, quais são os fundamentos da sua construção de ideias. É praticamente impossível refutar uma afirmação que não é fundamentada em termos claros, e muitas vezes o grosso do esforço discursivo está em encontrar essas fundamentações, esses pontos nevrálgicos do debate. Conheça seu argumento, suas premissas, e exponha-as para que sejam avaliadas e criticadas. Muitas pessoas entendem isso como um gesto de fraqueza, simplificar seu discurso até o ponto de ser entendido. Longe de ser um vício, a didática é uma virtude, contanto que não incorra em simplificações exageradas: caberá a você, que está defendendo seu argumento, sofisticar e demonstrar a complexidade dos argumentos, somente na medida em que se tornarem necessários. Como uma raiz, que vai chegando mais fundo e se ramificando mais, em mais ideias mais profundas. Se você quiser empurrar pra pessoa 20 conceitos de uma vez, ou presumir que ela já os conheça, provavelmente não chegará a lugar nenhum. Melhor é pensar da seguinte forma: é importante evidenciar quais são as premissas básicas do seu argumento e partir daí para aprofundar o que for necessário para uma melhor compreensão mútua no diálogo.

Por enquanto é só. Como qualquer diálogo, passo agora a bola de volta para nosso Ponta-Esquerda João Telésforo para que continue seu trabalho de construção de uma sociedade brasileira um pouco mais livre e mais justa.

Quando a reafirmação de preconceitos se torna (ou não) subversão

A controvérsia recente sobre a ofensa dirigida ao músico Raphael Lopes pelo humorista Felipe Hamashi, no show “Proibidão” em São Paulo, merece uma pequena reflexão sobre como, mesmo após vinte e poucos anos de criminalização do racismo (por força da própria Constituição), a questão continua sendo tratada aos trancos e barrancos no Brasil.

Um parêntese necessário: antes que digam que o termo “ofensa” é muito parcial para o caso, que na verdade o que ocorreu foi uma piada, chamo a atenção para o nome do show: Proibidão. Os comediantes sabem que o conteúdo do show é feito de ofensas. Tanto que pediram que o público assinasse um termo com a promessa de que não se sentiria ofendido com nenhuma das piadas (embora, como apontado neste texto, seja um pouco estranho afirmar que você não se ofenderá com algo que ainda não ouviu). Fim do parêntese.

"Se você acha que ser comparado com o King Kong é ofensivo, problema seu."

Num mundo ideal, eu não estaria escrevendo mais um texto para adicionar à enorme pilha do que já foi produzido no Brasil sobre o problema do racismo. Portanto, numa tentativa de variar um pouco a abordagem da questão, chamo a atenção para o que está sendo dito lá fora: com a atenção do resto do mundo cada vez mais voltada para nós, é de se esperar que apareçam reportagens ressaltando não só as vitórias, mas também os desafios do país. Se uma revista como a Economist já falou da mal-agourada eleição para prefeito de São Paulo deste ano, é natural que também tenha se preocupado com um problema que nasceu bem antes de Piratininga se tornar megalópole.

Numa comparação interessante com a história dos Estados Unidos, este artigo da Economist sobre o racismo no Brasil afirma que os negros aqui são “neither separate nor equal“. Não é novidade que nosso racismo assume formas diferentes daquelas que caracterizam a barreira racial nos EUA. Mas, como bem ressaltado pelo artigo, já não podemos continuar a repetir o mito de que somos uma espécie de democracia racial e de que os negros só são discriminados por serem pobres. Até porque todos sabemos que pessoas como o músico que tocou no Proibidão não são exatamente pobres – pelo menos para os padrões brasileiros.

A eterna pergunta que se coloca é: qual o melhor jeito de remediar essa situação e de construir para o futuro uma sociedade em que haja verdadeira igualdade de oportunidades? Sabemos que as políticas de ação afirmativa são controversas: há estudiosos que apontam como desvantagem dessas políticas o fato de “criarem” categorias nas quais os brasileiros não estão acostumados a serem encaixados. Segundo esse argumento, não costumamos pensar em grupos de negros e brancos dividindo a sociedade brasileira, até porque há um grau considerável de miscigenação. Isso seria um ponto positivo da nossa sociedade, que seria minado pela necessária classificação das pessoas através de ações afirmativas.

Por outro lado, é difícil pensar como a manutenção do jeitinho brasileiro de lidar com as diferenças raciais teria o poder de mudar algo. O caso do Proibidão é um exemplo interessante porque mostra um tipo de raciocínio curioso (para não dizer tolo): a ideia de que fazer piadas ofensivas, que repetem preconceitos antigos mas ainda vivos, é de algum modo subversivo ou representa uma quebra de tabus, porque aparentemente a turma do politicamente correto criou um tabu de que não se pode chamar pessoas de macacos. (Colegas, não sei o que acontece na realidade paralela de vocês, mas na minha os tabus são coisas aceitas sem motivo, sem justificação. Ganha um chocolate quem me convencer de que não existe motivo para uma pessoa se ofender quando alguém a chama de macaco, ser de inteligência inferior – a não ser que essa pessoa seja ativista pelos direitos dos animais, o que, como se sabe, está longe de ser a maioria da população.)

Vamos refletir um pouco sobre isso para ver se entendemos: repetir um preconceito que a maioria das pessoas sabe que existe (só não quer assumir) e fingir que não há nenhum problema nisso é visto como subversivo. Se eu fosse um ser extraterrestre, caísse no Brasil e ouvisse isso de um humorista, acharia que existe uma ditadura negra no país. Afinal, pela ótica dos comediantes, parece que as pessoas não podem simplesmente negar que racismo seja um problema, que já são presas, caladas e queimadas na fogueira. Vale registrar que há quem critique seriamente o modo como o racismo é tratado no sistema penal brasileiro, desde o tipo da pena (reclusão, a mais severa das penas privativas de liberdade) até o fato de ser crime inafiançável (ou seja, se tiver sido decretada prisão preventiva – a que ocorre antes da condenação apenas para garantir o andamento do processo – não se pode evitá-la mediante o pagamento de fiança). Mas parece haver uma certa rebeldia sem cabimento na atitude de afirmar aquilo que todo mundo já sabe – que negros são vistos como inferiores – apenas para mostrar que você é cool e fingir que isso não é uma questão preocupante, para não entrar na onda cafona da turma do politicamente correto. Quando muito, esse tipo de piada-ofensa apenas faz com que as pessoas pensem: “Nossa, como ele é racista. Como ele é mau. Ainda bem que eu não sou assim.” Dá para ver nisso alguma grande quebra de tabus em relação ao que a maioria dos brasileiros já pensa?

Isso não quer dizer, é claro, que o racismo não possa ser objeto de humor. Contudo, se a intenção do comediante é fazer as pessoas avaliarem internamente seu próprio racismo, a elaboração de piadas mais inteligentes é um imperativo. Tampouco é a intenção aqui fazer apologia da censura. Para falar a verdade, não sei em que entrelinhas do texto alguém poderia enxergar uma defesa da censura dos shows de comédia. Mas, como tem gente que se esforça bastante nesse sentido, deixo aqui a lembrança de que censura prévia é proibida pela Constituição e de que a responsabilidade criminal pelo exercício da liberdade de expressão não equivale a censura, porque logicamente não impede que a pessoa fale o que queira – já que ocorre depois de ela ter dito o que queria. O sistema penal pode obviamente ser criticado, alternativas podem ser propostas, mas não é interessante nem justo misturar os conceitos de censura e de responsabilidade a posteriori. O problema maior não é a solução jurídica para esse tipo de caso, pois ela já é razoavelmente bem estabelecida (ainda que haja pontos questionáveis como o bizarro contrato de não-ofensa mencionado acima). O ponto que deve ser ressaltado é a falta de efetividade de uma corrente do humor nacional que se afirma como um convite à reflexão, quando na verdade essa reflexão só ocorre no sentido de espelhar nossa ancestral hipocrisia.

A música do todo

"Música degenerada?"

Este post foi escrito em um domingo chuvoso, e, para entrar no clima, recomenda-se que seja ouvido ao som de uma música condizente com seu espírito – até para comemorar também a mudança de planos do ECAD sobre cobrança de vídeos “embedados” (sic), que será alvo de outro post, em outra ocasião.


Um elemento de participação – e utilidade – muitas vezes insuspeita na esfera pública de debate é a música. A despeito da miríade de visões teóricas diferentes recaindo sobre sua forma e conteúdo, o senso comum pretende tratar a música como algo extremamente subjetivo, intrinsecamente sujeito à avaliação estética individual, logo, impossível de aprisionar em um conceito valorativo. A lógica do: “Gosto é igual a nariz, cada um tem um seu”. Mas há algo de importante para a coletividade. A música também é uma forma de discurso. Uma das formas de perceber essa realidade é exatamente pelas formas de tentativa de controle do discurso, no caso, da música. O que acontece quando enfrentam-se a música mais variável e improvisada, o Jazz, e o totalitarismo (discutivelmente) mais opressor do século XX?

O escritor tcheco Josef Škvorecký faleceu esta semana de câncer. Škvorecký foi um um grande campeão da resistência aos invasores (primeiro nazistas, depois soviéticos), chegando a montar, em exílio no Canadá, uma editora para publicar livros banidos pelo regime de Moscou. A 68 Publishers foi durante muito tempo o canal de expressão de nomes como Vaclav Havel e Milan Kundera. Como legado Škvorecký deixa uma obra variada (os autores tchecos parecem sustentar a tese de que quanto mais adversidades maior a criatividade, apesar que se fosse por isso a Polônia deveria ser a maior fábrica de prêmios Nobel do planeta), e para nós da Casa dos Comuns deixa um relato interessantíssimo. Diz Škvorecký que durante a ocupação nazista à Checoslováquia o Reich tentou controlar até o Jazz!

  1. Pieces in foxtrot rhythm (so-called swing) are not to exceed 20% of the repertoires of light orchestras and dance bands;
  2. in this so-called jazz type repertoire, preference is to be given to compositions in a major key and to lyrics expressing joy in life rather than Jewishly gloomy lyrics;
  3. As to tempo, preference is also to be given to brisk compositions over slow ones so-called blues); however, the pace must not exceed a certain degree of allegro, commensurate with the Aryan sense of discipline and moderation. On no account will Negroid excesses in tempo (so-called hot jazz) or in solo performances (so-called breaks) be tolerated;
  4. so-called jazz compositions may contain at most 10% syncopation; the remainder must consist of a natural legato movement devoid of the hysterical rhythmic reverses characteristic of the barbarian races and conductive to dark instincts alien to the German people (so-called riffs);
  5. strictly prohibited is the use of instruments alien to the German spirit (so-called cowbells, flexatone, brushes, etc.) as well as all mutes which turn the noble sound of wind and brass instruments into a Jewish-Freemasonic yowl (so-called wa-wa, hat, etc.);
  6. also prohibited are so-called drum breaks longer than half a bar in four-quarter beat (except in stylized military marches);
  7. the double bass must be played solely with the bow in so-called jazz compositions;
  8. plucking of the strings is prohibited, since it is damaging to the instrument and detrimental to Aryan musicality; if a so-called pizzicato effect is absolutely desirable for the character of the composition, strict care must be taken lest the string be allowed to patter on the sordine, which is henceforth forbidden;
  9. musicians are likewise forbidden to make vocal improvisations (so-called scat);
  10. all light orchestras and dance bands are advised to restrict the use of saxophones of all keys and to substitute for them the violin-cello, the viola or possibly a suitable folk instrument.

O totalitarismo alemão tentou a todo custo encaixotar o Jazz em suas perspectivas “arianas”, bem longe de influências de “raças inferiores” como o povo judeu. É quase surreal a extensão do controle proposto, numa demonstração paradigmática de que uma sociedade totalitária esvazia qualquer possibilidade de ação criativa. O totalitarismo, extensivamente estudado no Século XX (especialmente por Hannah Arendt e seu “As origens do Totalitarismo”) é exatamente o sistema político que se torna onipresente na vida do cidadão, retirando até a possibilidade de mudança de sistema. Em vez da versatilidade, da alternância, do risco, o totalitarismo busca o método, o desempenho, a segurança. As liberdades individuais são suprimidas em prol do grande plano. O que é uma vida diante do projeto da coletividade? É sintomático que um regime calcado nessa lógica se encontre acossado pelo Jazz, música com história entrelaçada na sofrida trajetória dos negros norte-americanos, e que alcança justamente a virtuose estética com seus improvisos e harmonias de tirar o fôlego.

Quem venceu o confronto? Bem, a história está aí para renegar um dos movimentos estéticos à infâmia e exaltar o outro como representação visceral da liberdade e da pluralidade que é o agir humano. A renovação e reinvenção do Jazz é um testemunho à ideia de que a única e verdadeira música do todo não é só uma forma, mas a infinitude das possibilidades humanas.

A música como vetor de liberdade? Tema para outro post.

(Mais sobre a perseguição dos nazistas ao Jazz pode ser lido aqui, na Wikipedia mesmo. Sobre a ideia alemã de “música degenerada” é só ler aqui, também na Enciclopédia Virtual, grato a @cintia_nunes pelo link!)

Rosas, essas injustiçadas

A era de Bridget Jones está para acabar. Assim diz o blog Prospero, da Economist, que publicou na última terça-feira um artigo sobre a queda de popularidade da “chick lit” (literatura de mulherzinha, numa tradução sem rodeios) no mundo anglófono. Segundo o artigo, esse nicho dos best sellers não está exatamente morto, mas “amadureceu” e passou a abordar outras questões do universo feminino além do melhor modo de encontrar o marido ideal depois de atingir os 30 anos de idade.

Feminista, EU?

A cada ano, conforme a blogosfera feminista brasileira cresce, vejo mais pessoas protestando contra a perpetuação da imagem de mulherzinha no dia 8 de março. Perdi a conta de quantos artigos e tuítes diziam que aceitar rosas no Dia da Mulher significava colaborar para a descaracterização da data como um dia de luta feminista, pela igualdade, pelo fim da violência doméstica, pela desconstrução das expectativas sociais de beleza e comportamento que impedem que cada mulher desenvolva sua personalidade livre de discriminação. Que rosas são símbolos aparentemente inofensivos, mas na realidade perversos, pois representam um ideal de mulher frágil e delicada que, apesar disso, mostra-se traiçoeira com seus espinhos. Que receber a rosa com um sorriso significaria abraçar esse pacote injusto de expectativas sem a necessária contestação.

Seria absurdo diminuir a importância das causas feministas mencionadas acima (e aqui remeto para o ensaio de hoje do colega Wagner Artur, que já falou disso bem e exaustivamente). Mas não consigo deixar de pensar que há algo de errado num movimento feminista que orienta e praticamente ordena que as mulheres não gostem de receber flores (ou qualquer coisa relacionada ao mundo da mulherzinha) no dia 8 de março. É como se dissessem: não importa que vocês genuinamente se sintam bem dentro do padrão social! Ele é errado! Hoje não é dia de seguir o capitalismo malvado e opressor, é dia de se dedicar a uma causa maior! (Gostaria de saber se as pessoas que protestam nesse tom tomam um tempo para perguntar às interlocutoras se elas de fato se sentem oprimidas.)

Vejam: há uma diferença muito importante entre desabafos e palavras de ordem. É impossível negar que haja mulheres que se sentem limitadas pelos padrões da sociedade. Eu sou uma delas: não me preocupo tanto quanto “deveria” com roupas, crianças ou manicure. Tenho arrepios toda vez que alguém começa uma frase com “toda mulher é…”. Por isso, me identifico em parte com quem educadamente manda a galera enfiar a rosa no orifício anal – embora meus critérios de boa educação não permitam que eu diga isso em voz alta. Este Tumblr é um ótimo exemplo de como esses desabafos podem ser propagados de forma criativa e bem-humorada. Muito diverso disso, porém, é a atitude de gritar aos quatro ventos: “Não aceite os parabéns! Recuse as flores! Não elogie as mulheres, lute com elas!” É uma verdadeira cruzada contra o mundo da mulherzinha. Só que com um detalhe que mina todas as boas intenções: ela se volta contra um estereótipo específico e contra as pobres pessoas que, por um motivo ou outro (até mesmo por decisão própria, vejam que coisa!), o seguem, em vez de questionar o problema de fundo, que é a exigência de que as detentoras de uma vagina ajam de um modo predeterminado. Em outras palavras, o mundo não seria muito melhor se as lojas do shopping só distribuíssem cópias d’O Segundo Sexo no Dia da Mulher. Combater as expectativas sociais inserindo outro conjunto de expectativas que parece mais “legítimo”? Não parece muito promissor. Garanto que, desse jeito, as mulheres que gostam de receber flores não serão convencidas de que o feminismo também as interessa, o que é uma pena.

O maior problema da cruzada contra a mulherzinha foi brilhantemente apontado por Stephanie Carvin, do blog Duck of Minerva, e por Nathalie Reed, do Skepchick. Essa estratégia do movimento feminista apenas colabora para que as coisas de mulherzinha sejam consideradas… Bem, coisas de mulherzinha. Com toda a carga pejorativa que essa expressão possui – o que é um enorme problema e talvez seja o início de todos os problemas. Em vez de se preocupar com a apresentação de alternativas aos padrões sociais e com a celebração da diversidade que o rótulo “mulher” abarca, ocupa-se com a negação das rosas, dos cupcakes, da maquiagem e da lipoaspiração como interesses inferiores. Na falta da apresentação de alternativas, não se faz nada além de reforçar a ideia de que esses interesses são inerentemente femininos num mau sentido – aquele sentido de feminino que não se pode almejar, sob pena de seguir as exigências da sociedade. E acho que não preciso explicar por que ligar o adjetivo “feminino” a uma carga negativa é prejudicial: além de reforçar a discriminação contra as próprias mulheres, traz a desvantagem adicional de alimentar a insuportável paranoia dos homens a respeito de qualquer demonstração de “viadagem”.

É inegável que os símbolos e as palavras trazem consigo significados históricos que não escolhemos e que muitas vezes queremos rechaçar. Mas a solução está muito longe de destruir os próprios símbolos; antes, é preciso pensar no sentido que queremos que eles tenham. (Sobre isso, este discurso proferido por Jaclyn Friedman na SlutWalk de Boston é de leitura obrigatória.) Em V de Vingança, uma das obras de arte mais queridinhas e mal-interpretadas da cultura pop, as rosas são o símbolo maior da liberdade. Uma mulher que recebe parabéns e flores no dia 8 de março não está de modo algum impedida de lutar incessantemente pela equiparação salarial e pela sua autodeterminação sexual – mas pode enxergar esse gesto de carinho, dependendo de quem o exerce, como um ato de reconhecimento da sua humanidade. E não existe objetivo maior para o feminismo do que esse.